“A televisão me deixou burro
muito burro demais
agora todas as coisas que eu penso
me parecem iguais“
Tudo o que o sujeito dessa letra pensa lhe parece igual. Será por que ele só pensa as mesmas coisas, ou será por que, devido à televisão, todas as coisas, por mais diferentes que possam ser, são estranhamente igualadas em sua percepção? Parece que o eu dessa canção está nos dizendo que sua mente se assemelhou a uma tela de televisão,em que todas as imagens desfilam como que chapadas, por mais distintas que possam parecer.
Quase no final da letra você pode observar uma interessante inversão sintática, com o sujeito posposto ao predicado. Este pequeno hipérbato foi necessário para colocar o verbo “captar“ antes de “capturar“,de modo a criar uma espécie de gradação. “Capturar“ é mais forte que “captar“. Ao mesmo tempo, ao ser posto na mesma seqüência que “capturar“, o verbo “captar“ ganha aqui conotações mais perigosas do que as comumente atribuídas a ele. A captação de imagens pela antena de televisão deixa de ser assim algo tão ingênuo e passivo para adquirir matizes de processo ativo. “Captar“ é quase “capturar“, o que implica ir ao encalço de, criar estratégias, armadilhas para o aprisionamento de homens ou animais. O letrista dissera antes: eu vivo dentro dessa jaula. O que indica que nossa análise não está assim tão equivocada. Ele também é o capturado. Ele foi capturado pelas imagens que seus olhos captaram (ou capturaram). Ele está acuado, como um animal (ou burro). E aqui a palavra “burro“, usada lá no início da letra, passa a ter sentido literal, de animal. Porque ocorreu aqui um processo de animalização.
Com isso, os Titãs estão nos dizendo que o telespectador em geral é presa da televisão, que ele se torna refém dela. Na verdade, o verso “meu coração captura“ deve ser lido antes como “meu coração é capturado“. Essa leitura é perfeitamente autorizada pela letra. Captar aqui é ser capturado, é perder o espírito crítico. Isso ocorre a ponto de todas as imagens lhe parecerem iguais, ou seja, a ponto de as imagens, de pessoas, natureza, objetos ou que for, permanecerem chapadas, sem consistência. Na verdade,é como se ocorresse uma espécie de desumanização também das imagens, e não só do telespectador. Na televisão, as coisas perderiam sua integridade,sua substância.
O termo “televisão“, ver à distância, passa a significar, portanto, não ver. O espetáculo pode não ser a realidade. A telinha pode funcionar como um meio de ofuscamento.
O telespectador ficou inerte, completamente passivo, e qualquer clarão o incomoda. Há aqui por certo uma brincadeira com aquele tipo de situação em que apagamos as luzes, fechamos totalmente a janela do quarto ou da sala para assistir a um filme, pois o ambiente escuro como que tornaria a imagem mais nítida. A essa escuridão o letrista dá um sentido figurado: não só a sala, mas a mente também está escura. Tão acostumada às sombras, que contrai imediatamente os olhos ao mais ameno raio de luz.
E você, como assiste televisão? Você fica atento para a linguagem utilizada, para os preconceitos que podem vir embutidos, para os erros de lógica cometidos, para as falsificações? Se responder com uma negativa a dois itens ou mais, então você precisa refletir um pouquinho sobre essa música. E como você pode se armar para ver televisão? Transformando-se num espectador ativo, que não engole facilmente o que vê.
Um conselho: leia jornal e sobretudo livros, multiplique os prazeres no seu lazer. Veja a vida lá fora e não arregale tanto os olhos para as “maravilhas“ do mundo do espetáculo. A vida é muito complexa para caber numa telinha. Cuidado com o que sua antena capta porque você pode ser o capturado nessa história...